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hikafigueiredo

“First Cow”, de Kelly Reichardt, 2020

Filme do dia (111/2024) – “First Cow”, de Kelly Reichardt, 2020 – 1820, região do atual Oregon. “Cookie” Figowitz (John Magaro) é o cozinheiro de um grupo de caçadores e comerciantes de peles, que luta para extrair da floresta o suficiente para a sobrevivência de todos. Durante suas empreitadas por ingredientes, ele conhece King-lu (Orion Lee), um imigrante chinês que está sendo perseguido por outro grupo de caçadores, auxiliando-o a se ocultar de seus perseguidores. O contato entre os dois homens decidirá o destino de ambos.





Muito embora “Firts Cow” seja um “western”, ele subverte todo o imaginário relacionado ao gênero. Abandonando o clássico ambiente desértico, as disputas entre colonizadores brancos e índios e os tiroteios entre pistoleiros rivais, o filme abraça outro espaço inóspito – no caso, as florestas quase intocadas do Oregon – e outros personagens centrais – um cozinheiro e um imigrante chinês. Em comum com o faroeste clássico, temos a luta pela sobrevivência, a busca por novas oportunidades a oeste do território colonizado e, claro, a violência de uma terra sem lei, ainda que essa violência seja implícita e infinitamente mais palpável e próxima de nós do que aquela manifestada nos “westerns” mais tradicionais. Diria mais: o filme traz um olhar mais sensível sobre o gênero e não a explosão de testosterona que lhe fez a fama. A narrativa retrata a amizade entre “Cookie”, o cozinheiro tímido e talentoso, e King-lu, o imigrante chinês – enquanto o primeiro só pensa em sobreviver com alguma paz, o segundo tem sonhos elevados de sucesso e riqueza. Se, por um lado, as questões atinentes ao capitalismo estão presentes na obra na luta de quase todos os personagens para sair da pobreza extrema e na procura por oportunidades nestas novas terras que gerem, de alguma forma, riqueza, o foco do filme está na amizade entre os protagonistas e na extrema lealdade de um para o outro. Naquele ambiente hostil e violento, não apenas a improvável amizade entre King-lu e Cookie destoa, mas os próprios personagens parecem não pertencer àquela realidade. Cookie, em particular, é uma figura dissonante de tudo aquilo, vez que exibe uma delicadeza e uma inocência incomuns àquele universo. De uma maneira delicada, a obra retrata a humanidade que resiste a uma existência desumana. O filme tem um ritmo suave, pausado, que, no último terço de duração, quase enfarta o espectador pela tensão que cria. A atmosfera inicial é aconchegante, mas isso dura muito pouco e, paulatinamente, cresce a tensão e a sensação de desastre iminente. Gostei do trabalho sonoro da obra – cru, sem músicas desnecessárias e manipuladoras, a edição de som transforma aquelas florestas em um local desafiador e traiçoeiro, trazendo tensão aos personagens e ao espectador. Apesar de um pouco escura, a fotografia, aliada ao desenho de produção, caracteriza muito bem o ambiente desolador, esquecido por Deus – a vila ao entorno do forte, paupérrima, parece habitada somente por miseráveis, homens que ali estão por puro desespero, movidos pelos sonhos e esperanças de uma vida melhor. Quanto às interpretações, destaque absoluto para o trabalho de John Magaro – o ator imprime ao personagem Cookie uma ingenuidade tocante, uma maneira suave de se movimentar e um olhar de tal doçura que enternece o mais frio dos espectadores! Orion Lee, por sua vez, traz um pouco mais de praticidade e determinação ao personagem King-lu, o que não influencia em sua leal relação com Cookie – em uma cena, próxima ao fim, a preocupação de King-lu em respeitar as limitações do amigo, preservando seu ritmo e permanecendo ao seu lado, foi uma das passagens mais bonitas sobre a amizade que eu me lembro de ter visto em um filme. No elenco, ainda, Toby Jones como chefe do entreposto, e Lily Gladstone, maravilhosa como uma nativa aculturada. “First Cow” é um filme sutil, feito de detalhes, daqueles que ficam na nossa cabeça por muito tempo porque queremos sorvê-lo por completo. Eu gostei demais, mas aviso que é completamente diferente de um western clássico em absolutamente tudo. Segundo o Justwatch, o filme está para alugar no Apple TV, em streaming pelo MUBI e em mídia física, lançada pela Versátil.

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