Filme do dia (149/2023) – “Irmandade da Sauna a Vapor”, de Anna Hints, 2023 – Na Estônia, pequeno país do leste europeu, existe uma tradição que foi tombada como patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco. Trata-se da tradicional prática da sauna a vapor, cujo ritual é retratado nesse documentário.
A obra acompanha um grupo de mulheres que, ao longo de certo período (não fica claro quanto, mas, pelas modificações ambientais, conclui-se que passa de um ano), encontram-se na tradicional sauna a vapor estoniana para compartilhar histórias, experiências e dores. No escuro calor da sauna, exibindo seus corpos nus, as mulheres discorrem sobre suas vidas, enquanto seguem o minucioso ritual. Que filme, meu Deus... Antes de qualquer coisa, é uma obra essencialmente feminina. As questões ali expostas são, todas, relacionadas ao universo feminino. São questões universais que, mais cedo ou mais tarde, toda e qualquer mulher vivenciará em um mundo marcado pelo patriarcado e domínio masculino. A impressão que eu tive é que a obra praticamente esgota, em poucas, mas marcantes narrativas, toda a temática ligada às mulheres. Ali elas dialogarão sobre padronização de corpos que abala a autoestima das mulheres, com seus corpos reais; gestação; filhos; abortos; violência doméstica; violência sexual; períodos menstruais; envelhecimento; relações familiares; relações amorosas; sexo. Ali, também, elas encontrarão o suporte necessário para continuarem sua caminhada. O filme é um belíssimo exercício de solidariedade e sororidade e revela uma delicadeza ímpar. Os muitos fragmentos de narrativa são arranjados de uma forma aparentemente aleatória, não causando, no entanto, qualquer estranhamento – ao contrário, há uma fluência das histórias, entremeadas dos rituais da sauna, bastante natural e agradável. Tais narrativas são, por vezes, dolorosas e sempre bastante íntimas, quase segredos guardados a sete chaves e revelados somente para suas irmãs de confiança. O filme opta por quase não mostrar rostos, preferindo exibir partes dos corpos nus das mulheres participantes. Minha interpretação é que isso, além de não expor a identidade daquelas mulheres, também remete à ideia de questão universal feminina – não importa quem relatou, são vivências compartilhadas por todas as mulheres. Não bastasse seu conteúdo impactante, o filme é visualmente muito lindo. A fotografia explora o jogo de luz e sombra do interior da sauna e recorta com cuidado os corpos, muitas vezes mostrados na contraluz. Há cenas, também, do ambiente externo da sauna – faz parte do ritual os corajosos banhos no rio congelado (no inverno) ou não (no verão), sempre com o cuidado de evitar os rostos das mulheres presentes. A edição de som alterna a narrativa das mulheres com os cânticos que acompanham a experiência e que remetem à ideia de limpeza da alma e do corpo, do expurgo das dores e de todo o sofrimento e do acolhimento pelas demais mulheres. Por sua própria natureza, é um filme que dialoga, primordialmente, com as mulheres, mas que também tem o poder de tocar o público masculino aberto a escutar as vivências femininas (mas entendo que são experiências diferentes, dentro do cinema, para homens e mulheres). A obra foi agraciada com o Prêmio de Melhor Direção na Competição de Documentários no Festival de Sundance (2023) e foi selecionada para representar a Estônia do Oscar (2024). Vi um diálogo poderoso do filme com o documentário Humano (2016). Eu, que nem sou a maior fã de documentários, fiquei completamente apaixonada pelo filme, por sua sensibilidade e pela forma corajosa, mas gentil, de tratar temas tão íntimos. Se tiverem chance, assistam.
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