Filme do dia (82/2022) - "O Acontecimento", de Audrey Diwan, 2021. França, 1963. A jovem Anne (Anamaria Vartolomei) é uma estudante brilhante, com um futuro promissor pela frente. Quando ela, subitamente, descobre-se grávida e vê seus sonhos profissionais potencialmente ruindo, ela passa a cogitar a possibilidade de fazer um aborto, em uma época em que isso era completamente proibido no país.
Baseado no romance homônimo de Annie Ernaux, com fortes raízes autobiográficas, o filme retrata o drama e a solidão das mulheres que descobrem gravidezes indesejáveis em locais onde a interrupção da gravidez é visto como um crime imperdoável, caso da França nos idos de 1963. É uma obra profundamente dolorosa, pesada, e que dialoga intimamente com praticamente qualquer mulher que já tenha se imaginado na situação da protagonista. O que salta aos olhos, aqui, é principalmente o abandono em que se veem as mulheres nesta condição: inexiste apoio por parte dos homens que contribuíram para aquela situação, que, cinicamente lavam as mãos; os "amigos" do sexo masculino veem a descoberta da experiência sexual das amigas como um convite às suas camas e, sem qualquer pudor, ultrapassam limites óbvios; os médicos, temerosos de um envolvimento criminal com a situação, deixam as mulheres à própria sorte; e sequer as demais mulheres acolhem suas pares, virando-lhes as costas, sem qualquer sentimento de sororidade. Na obra, Anne vê-se completamente desamparada, correndo contra o relógio, enquanto as semanas de gravidez se somam, tornando uma eventual interrupção, a cada momento, mais e mais perigosa. O filme torna claro, ainda, o quanto a gravidez e a impossibilidade do aborto são pilares da dominação das mulheres pelo patriarcado, tornando-as vítimas de uma situação de desigualdade opressora e absurda. Evidentemente, é um filme que encontra muito mais eco entre o público feminino do que entre o masculino, por mais receptivo que esse seja, uma vez que trata de vivências e dramas eminentemente femininos. A narrativa é linear, em um ritmo bastante lento e pausado, bastante adequado à discussão. A obra dialoga intimamente com outro que trata do mesmo tema, o sensacional "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" (2007), que traz o mesmo desespero e abandono retratado por este filme. A direção de Audrey Diwan é segura e, certamente, trouxe um reforço ao olhar feminino da autora Annie Ernaux. Das questões técnicas, o que me chamou mais a atenção foi a câmera atenta, perscrutadora, que acompanha a protagonista por uma solução àquela situação, muitas vezes através de planos fechados na personagem. As imagens são bastante cruas, sem qualquer romantismo. Como é comum no cinema europeu, momentos importantes e com grande carga dramática vêm desacompanhados de qualquer música "manipuladora", algo tão comum no cinema norte-americano. O elenco traz uma expressiva Anamaria Vartolomei - a atriz carrega a personagem de apreensão, desespero silencioso e a mais absoluta solidão, está realmente ótima no papel; Anna Mouglalis interpreta a Madame Rivière - seu pouco tempo em cena não a impede de trazer uma profunda carga dramática à sua presença, simplesmente perfeita; no elenco, ainda, Luàna Bajrami, Louise Orry-Diquéro, Louisse Chevillotte, Pio Marmaï e Kacey Mottet Klein. A maravilhosa Sandrine Bonnaire faz uma pequena ponta como Gabrielle. O filme é maravilhoso, ainda que pesadíssimo, em mais de uma acepção. Gostei demais e recomendo muito, em especial para as mulheres.
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