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“O Espírito da Colmeia”, de Victor Erice, 1973.

hikafigueiredo

Filme do dia (11/2025) – “O Espírito da Colmeia”, de Victor Erice, 1973. – Espanha, década de 1940. Num pequeno povoado espanhol, um cinema itinerante chega ao local trazendo a obra “Frankenstein”, de James Whale (1931). A obra toca a pequena Ana (Ana Torrent), a qual levanta questões para sua irmã Isabel (Isabel Telleria) responder. Sem conseguir as respostas que esperava, Ana passa a divagar sobre a história, mesclando a realidade com sua imaginação.




 

Neste filme bastante interpretativo, filosófico e sensorial, o diretor Erice discorre sobre o governo e a sociedade sob o domínio ditatorial de Franco, usando, para tanto, de metáforas e paralelos relacionados ao filme “Frankenstein”. A obra não é de óbvia interpretação e cheguei ao seu fim com uma sensação etérea de compreensão. Fiquei vários dias “matutando”, tentando forçar um entendimento racional e pormenorizado do filme, em vão, até entender que ele tem de ser absorvido subjetivamente. São as sensações e sentimentos que a obra desperta o que realmente importa e onde reside a principal relação entre realidade e narrativa cinematográfica. A menina Ana assiste ao filme – ela nem o escolheu, ele era o que havia disponível no momento – e fica fascinada pela história do monstro, tanto quanto aterrorizada e cheia de questões pendentes. Paralelamente a isso, temos o regime de exceção de Franco, um governo sanguinário que eliminava aqueles que se opunham a ele – que também era a realidade disponível naquele momento. Como o filme, a situação política despertava medo e dúvidas. Quem era o monstro da história? Aquele que criou a criatura ou a própria criatura? Quem representava perigo? O governo repressor ou aqueles que buscavam por liberdade? Ana encontra um forasteiro – certamente um opositor do governo – escondido em uma construção abandonada. Quem a criança tem de temer? Quem destrói quem? Por outro lado, temos a família da menina – uma família que claramente não se interrelaciona. Uma casa silenciosa, vazia, sem vida – um reflexo daquele momento na Espanha, em que todos temiam a todos, onde não havia espaço para a naturalidade, onde tudo era medo e desconfiança, onde cada um sobrevivia enclausurado em si mesmo. Ana transita por estes espaços vazios atrás de respostas, com o olhar curioso da criança e a sensação de perigo iminente. Afirmo que o forte do filme é essa atmosfera de tatear o vazio sem saber o que te espera, sem saber de onde poderá vir o golpe; é o medo palpável de algo que não se compreende ou se entende minimamente. O formato de conto de fadas às avessas é reforçado pela frase “Era uma vez...” no início da história, de onde seguimos uma fábula terrível. Acredito que a ideia do “espírito da colmeia” – lembrando que o pai das irmãs é, também, um apicultor – reside na questão de cada um agir conforme se espera, mecanicamente, sem questionar e sem se relacionar com os demais, tanto numa sociedade opressora, quanto dentro daquela casa despida de vida. A pequena Ana sobressai dessa inércia, dessa ausência de questionamento, desse viver mecânico – seu olhar infantil e curioso perscruta a realidade e ela tem ânsia de saber e compreender. Como Ana, somos observadores dessa realidade que parece nos escapar e que tem um quê de onírica. Não espere um filme fácil – ele exige certo trabalho de compreensão que talvez nem chegue a se completar. A narrativa, embora linear, parece suspensa no tempo; o ritmo é lento, arrastado, mas completamente adequado para que o espectador saboreie as muitas sensações que a obra desperta. É um filme muito silencioso, o que instiga, ainda mais, as nossas mais genuínas emoções. Impossível falar do filme sem destacar as interpretações de seus atores – o pouquíssimo tempo em cena de Teresa Gimpera como a mãe Teresa e de Fernando Fernán Gómez como o pai Fernando não os impede de exprimir todo o vazio daquele casal. Teresa escreve cartas saudosas a um amor longínquo, que está na guerra; ela sequer percebe suas filhas, quiçá o marido. Ela está ali apenas de corpo, sua alma encontra-se distante, em outro tempo e local. Fernando, por sua vez, está trancado em si mesmo – passa seu tempo com suas abelhas ou fazendo um estudo acadêmico delas. Como Teresa, pouco ou nada percebe as meninas. A atriz mirim Isabel Telleria interpreta a irmã Isabel – existe uma crueldade latente na garota, resultado da violência silenciosa e abandono que vivencia diariamente. Todos os intérpretes são ótimos e carregam de emoções cruas suas interpretações. Mas é Ana Torrent quem desponta, maravilhosa e singular. Três anos antes de trabalhar no fantástico “Cria Cuervos”, de Carlos Saura (1976), a atriz já mostrava todo seu talento como a questionadora Ana – seu olhar parece engolir tudo em volta, sua inocência infantil está estampada em sua expressão facial e na forma como se move. Ana Torrent é incrível! O filme deixa marcas e reverbera em nossa cabeça e peito por dias a fio. Filmão, viu, mas repito que não é fácil nem óbvio. Segundo o Justwatch, o filme está em streaming pela Amazon Prime e à venda no Oldflix.

 
 
 

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