Filme do dia (23/2024) – “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, 2023 – A partir do cadáver de uma bela mulher, o cirurgião e cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe) cria uma adorável criatura – a cativante Bella (Emma Stone). Esta, com sua inteligência incomum, demonstra sede de conhecimento e novas experiências, motivo pelo qual foge da casa de seu criador e sai em uma ousada aventura com o advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo).
Livremente inspirado no livro “Frankenstein”, de Mary Shelley, a obra faz uma criativa releitura da história da criatura criada a partir de cadáveres e trazida a um mundo que lhe é tão estranho quanto sedutor. Sai de cena o monstro Frankestein e entra, no lugar, a jovem e bela Bella Baxter. Curiosa, sedenta de experiências e, acima de tudo, completamente despojada de qualquer freio moral, social ou cultural, Bella surge como uma personagem que tateia a vida atrás de diferentes tipos de conhecimento e agarra a vida com fervor, sorvendo cada gota daquilo que experimenta. O que Bella tem de ingênua – ela não compreende regras sociais, não vê lógica em apegos mundanos ao dinheiro, ao status ou ao poder, não faz juízo de valores e age segundo seus impulsos mais naturais -, tem, também, de livre. Em plena Inglaterra vitoriana, Bella ignora qualquer puritanismo e regra de conduta e abraça sua liberdade, aproveitando tudo aquilo que propõe para si mesma – justamente por isso, a obra tem um viés intrinsicamente feminista, abordando temas que vão da sexualidade, maternidade, emancipação feminina, libertação de amarras impostas pelo machismo estrutural, sororidade, equidade em relação aos homens e liberdade de escolha, dentre outros. Okay, o filme traz pelo menos um equívoco – prostituição nunca foi e nunca será simplesmente uma escolha e sua romantização me pareceu um pouco descabida (digo isso sem qualquer julgamento moral, okay?). Ao longo da narrativa acompanhamos o desenvolvimento das potencialidades de Bella, tanto no plano físico (desde seus primeiros passos, difíceis e desengonçados), quanto no intelectual e até mesmo ético (independente de moralidade). Criada pelo cético Godwin, Bella é desprovida de sentimentalismos baratos, desapegada da ideia de posse e completamente lógica em suas colocações, muito embora, por vezes, impulsiva em suas reações. A narrativa é linear, em ritmo intenso. A atmosfera é onírica, quase mágica, causa um estranhamento no espectador e pode ser mais ou menos perturbadora, dependendo um pouco dos freios morais do espectador. Diferentemente de outras obras do diretor, aqui o estranhamento é mais “leve”, não traz o peso e a angústia inerentes às obras “Dente Canino” (2009), “O Lagosta” (2015) e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), tendo uma atmosfera um pouco mais próxima de “A Favorita” (2018). Ainda que seja um drama, temos inúmeros alívios cômicos ao longo da obra, tornando-a infinitamente mais fácil de lidar que as demais obras de Lanthimos. Visualmente, o filme é uma grande, enorme, fabulosa “viagem”. A fotografia não poderia ser mais criativa e variada: temos o uso recorrente de grande-angulares, inclusive de lentes “olho-de-peixe”, que distorcem a imagem; temos o efeito “olho mágico”; temos inúmeros movimentos de câmera (travellings, panorâmicas) realizados em ângulos de câmera inclinados (plongée e contra-plongée); temos posicionamentos de câmera criativos, sofisticados e inusitados a quase todo momento; temos cenas P&B e temos cenas de colorido intenso, de cores muito saturadas e contrastadas; temos, enfim, uma gama gigantesca de escolhas visuais aproveitadas pelos diretor. O desenho de produção, por sua vez, não fica nada atrás: perceptivelmente feito quase todo em estúdio e fazendo uso, também, de muito CGI, os cenários são deslumbrantes, repletos de detalhes e minúcias, e é difícil captar toda sua riqueza em uma única vista ao filme; os figurinos são, no mínimo, curiosos e acompanham a evolução da personagem Bella – como a protagonista, suas roupas também parecem em construção e quanto mais “sofisticada” se torna a personagem, mais complexas são suas vestimentas. A sonoridade do filme, como regra de Lanthimos, é estranha, atonal, faz uso de sons muito agudos ou graves repetitivos e causam certo desconforto no espectador. As interpretações mostram-se acima do comum: Willem Dafoe aparece muito à vontade como o personagem Godwin Baxter, inclusive por ser esquisitinho como o ator gosta; Mark Ruffalo também traz um bom trabalho como o inicialmente sedutor (e, logo em seguida, patético) Duncan Wedderburn; Ramy Youssef interpreta o doce Max McCandles; o personagem mais equilibrado e coerente da trama; Christopher Abbott interpreta o monstruoso Alfie; mas é Emma Stone quem dá um show de interpretação – sua Bella Bexter é de uma autenticidade única: ela é estranha, ela é sedutora, ela é instigante... ela é apaixonante!!! Impossível descrever em poucas linhas o trabalho insano da atriz na construção da protagonista. Não é à toa que Emma Stone anda fazendo arrastão nas premiações: já foi agraciada com o Globo de Ouro (2024) de Melhor Atriz em Comédia, recebeu o prêmio Critics’ Choice Awards (2024), está concorrendo ao BAFTA(2024) e ao Oscar (2024) na categoria de Melhor Atriz (e confesso que minha torcida é para ela). O filme também foi indicado para um sem fim de categorias nas principais premiações, além de ser indicado para o Leão de Ouro no Festival de Veneza (2023). Pessoal... o filme é SENSACIONAL, assim mesmo, com letras garrafais. Ah... tem muitas cenas de sexo e pode incomodar os mais puritanos. Como esse não é o meu caso, eu amei e recomendo DEMAIS.
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