Filme do dia (56/2024) – “Um Herói”, de Asghar Farhadi, 2021 – Rahim (Amir Jadidi) está preso por não conseguir pagar uma dívida com Bahram (Mohsen Tanabandeh). Durante uma saída de dois dias, Rahim encontra Farkhondeh (Sahar Goldoost), sua amada, que encontrara uma bolsa contendo algumas moedas de ouro e sugeriu que ele pagasse parte de sua dívida com o valor alcançado com a venda das moedas. Ele sente-se tentado, mas sua consciência falará mais alto.
O diretor iraniano Asghar Farhadi é extremamente hábil em apresentar situações em que, um mínimo deslize, desencadeia toda uma sequência de acontecimentos problemáticos para os envolvidos, levando a consequências catastróficas, que teriam sido facilmente evitadas. O diretor também tem o dom de enredar os personagens – pessoas comuns, no mais das vezes cobertas de boas intenções – em circunstâncias que atentem contra seus princípios, ferindo seu orgulho, dignidade, honestidade ou qualquer outra convicção que estes possuam. Nesta obra, mais uma vez, Farhadi exercita sua habilidade em construir o caos e o desastre para a vida dos personagens, demonstrando como indivíduos comuns, inadvertidamente, podem cair em situações imprevistas e serem duramente responsabilizados por isso. Na história, um prisioneiro por dívidas sonha em sair do cárcere para casar com sua amada e voltar a conviver com seu filho. A moça, a qual encontrara uma bolsa contendo moedas de ouro, sugere a ele vender as moedas para pagar sua dívida, mas a honestidade dele o impede e ele devolve a valise para quem de direito. Sua atitude chega aos ouvidos dos diretores da prisão, que veem uma oportunidade de desviar a atenção da mídia de um recente suicídio no presídio. Cria-se, assim, sem que o rapaz tivesse essa intenção, um acontecimento midiático que o coloca em evidência e lhe enche de esperança de conseguir livrar-se do cárcere. O que era uma atitude simples e despretensiosa torna-se um monstro, uma bola de neve que vau levando tudo ao seu redor. A narrativa vai trazer uma discussão sobre verdade/mentira, orgulho/humilhação, honra/desonra, honestidade/desonestidade, perdão/mágoa, lealdade, amor e esperança. A narrativa é linear, em ritmo moderado para os moldes ocidentais, mas extremamente ágil para o padrão iraniano – eu considero Farhadi o mais ocidental dos diretores iranianos, não nas temáticas, mas na linguagem cinematográfica utilizada, bastante similar àquela que estamos habituados no ocidente. A atmosfera inicial é leve, mas, ao longo da narrativa, vai ganhando tensão e dando uma agonia desesperadora – confesso que o filme chegou a me deixar desconfortável pelas injustiças sofridas pelo personagem. Curioso que Farhadi retrata pessoas absolutamente comuns – ninguém é intrinsicamente bom ou mau, são personagens complexos, que têm lá suas razões, então inexistem heróis ou vilões na trama. Mesmo a figura de Bahram, que constitui o antagonista de Rahim, não é alguém ruim e por mais que desperte certa indignação em alguns momentos, explica os motivos de sua mágoa e inflexibilidade (vender as joias da esposa e perder o dote da filha são situações gravíssimas num país muçulmano). Como já mencionado, o filme faz uso de uma linguagem cinematográfica bastante convencional, mas tudo muito bem construído, sem qualquer aresta a ser aparada. A fotografia colorida traz tons quentes e muita luminosidade. O desenho de produção volta-se para a cultura iraniana nas roupas, objetos de cena e espaços – para mim tudo é muito lindo. O elenco, extremamente bem dirigido pelo diretor, traz Amir Jadidi como o humilhado Rahim – o personagem é tocante em sua humanidade e extremamente convincente em suas razões, num ótimo trabalho do ator; como Bahram, temos Mohsen Tanabandeh (ator do ótimo “Terceira Guerra Mundial”, 2022), também muito bem no papel, despertando sentimentos bem contraditórios no espectador; Como Farkhondeh, a atriz Sahar Goldoost, perfeita como a leal amada de Rahim, disposta a tudo para tê-lo por perto. O filme, excepcional (como quase tudo que o diretor já fez), foi indicado para os prêmios Globo de Ouro (2022), na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, Critics’ Choice Awards (2022), também na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e Palma de Ouro em Cannes (2021), sendo agraciado com o prêmio Grand Prix neste último festival. Preciso destacar a cena final da obra, um exercício de sensibilidade incomum, uma cena que diz tanto com tanta simplicidade e que desperta uma tristeza tão grande – um fechamento maravilhoso para um filme maravilhoso. Recomendo demais. Segundo o Justwatch, o filme está em streaming pela Globoplay e para alugar pela Amazon Prime e AppleTV.
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